"O verdadeiro choque vem depois. Entre
os judeus surge, de repente, um homem que começa a falar como se ele próprio
fosse Deus. Afirma categoricamente perdoar os pecados.
Afirma existir desde sempre e diz que
voltará para julgar o mundo no fim dos tempos. Devemos aqui esclarecer uma
coisa: entre os panteístas, como os indianos, qualquer um pode dizer que é uma
parte de Deus, ou é uno com Deus, e não há nada de muito estranho nisso.
Esse homem, porém, sendo um judeu, não
estava se referindo a esse tipo de divindade. Deus, na sua língua, significava
um ser que está fora do mundo, que criou o mundo e é infinitamente diferente de
tudo o que criou. Quando você entende esse fato, percebe que as coisas ditas
por esse homem foram, simplesmente, as mais chocantes já pronunciadas por
lábios humanos.
Há um elemento do que ele afirmava que
tende a passar despercebido, pois o ouvimos tantas vezes que já não percebemos
o que ele de fato significa. Refiro-me ao perdão dos pecados. De todos os
pecados. Ora, a menos que seja Deus quem o afirme, isso soa tão absurdo que
chega a ser cômico. Compreendemos que um homem perdoe as ofensas cometidas
contra ele mesmo. Você pisa no meu pé, ou rouba meu dinheiro, e eu o perdoo.
O que diríamos, no entanto, de um homem
que, sem ter sido pisado ou roubado, anunciasse o perdão dos pisões e dos
roubos cometidos contra os outros? Presunção asinina é a descrição mais gentil
que podemos dar da sua conduta. Entretanto, foi isso o que Jesus fez. Anunciou
ao povo que os pecados cometidos estavam perdoados, e fez isso sem consultar os
que, sem dúvida alguma, haviam sido lesados por esses pecados.
Sem hesitar, comportou-se como se fosse ele
a parte interessada, como se fosse o principal ofendido. Isso só tem sentido se
ele for realmente Deus, cujas leis são transgredidas e cujo amor é ferido a
cada pecado cometido.
Nos lábios de qualquer pessoa que não Deus,
essas palavras implicam algo que só posso chamar de uma imbecilidade e uma
vaidade não superadas por nenhum outro personagem da história.
No entanto (e isto é estranho e, ao mesmo
tempo, significativo), nem mesmo seus inimigos, quando leem os evangelhos,
costumam ter essa impressão de imbecilidade ou vaidade. Quanto menos os
leitores sem preconceitos.
Cristo afirma ser "humilde e
manso", e acreditamos nele, sem nos dar conta de que, se ele fosse somente
um homem, a humildade e a mansidão seriam as últimas qualidades que poderíamos
atribuir a alguns de seus ditos.
Estou tentando impedir que alguém repita a
rematada tolice dita por muitos a seu respeito: "Estou disposto a aceitar
Jesus como um grande mestre da moral, mas não aceito a sua afirmação de ser
Deus." Essa é a única coisa que não devemos dizer.
Um homem que fosse somente um homem e
dissesse as coisas que Jesus disse não seria um grande mestre da moral. Seria
um lunático - no mesmo grau de alguém que pretendesse ser um ovo cozido - ou
então o diabo em pessoa. Faça a sua escolha.
Ou esse homem era, e é, o Filho de Deus, ou
não passa de um louco ou coisa pior. Você pode querer calá-lo por ser um louco,
pode cuspir nele e matá-lo como a um demônio; ou pode prosternar-se a seus pés
e chamá-lo de Senhor e Deus.
Mas que ninguém venha, com paternal
condescendência, dizer que ele não passava de um grande mestre humano. Ele não
nos deixou essa opção, e não quis deixá-la".
(Clive Staples Lewis – Cristianismo Puro e
Simples – 1952)
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